21.7.10

adega de deus

(ou sobre família, bebidas e missas)

toda minha família sempre foi católica fervorosa, do tipo que vai na igreja todo domingo, que participa ativamente de grupos comunitários, paga o dízimo e tem o telefone do padre para 'emergências' (q-). durante minha primeira infância, meus Pais praticavam muito a religião. com o tempo minha Mãe se afastou um pouco, porém a fé católica dela nunca se perdeu nem por isso, nem por nada. ela sempre nos obrigou a ir à igreja. já meu Pai foi se tornando cada vez mais apegado ao catolicismo, faz muita questão de missas, pai-nossos, promessas e padroeiros. minha Irmã costumava ser a líder dos grupos mais jovens da igreja do bairro. meu Irmão, é o querido entre as beatas e tiete da bandinha das missas. minha casa cheira tanto a fé, com imagens e versículos espalhados nos cômodos que, às vezes, sinto que fui criada em uma capela.

quando crianças, íamos todos os domingos passar o dia na casa do meu Tio-Avô, depois da missa, claro. meu Pai, minha Mãe, eu, minha Irmã e meu Irmão. na época, tinha uns Primos que adoravam uma cerveja e tenho na memória as cenas dos meus Pais bebendo com eles, principalmente meu Pai, que bebia bastante e ficava bem afetivo quando o álcool começava a subir, mas mesmo bêbado ele tinha dificuldade em demonstrar afeto. um dos Primos também ficava afetivo, mais do que meu Pai, e conseguia demonstrar muito bem. entenda como quiser. já minha mãe, se limitava ao vinho, ela nunca foi muito de cerveja. uma taça era suficiente para que ela já ficasse meio tonta, feliz e carinhosa e, como meu Pai, também não demonstrava essas 'fraquezas alcóolicas'. ela costumava a falar cada vez mais alto e ficar cada vez mais promíscua a cada taça de vinho finalizada.

todos católicos fervorosos.

meus Irmãos e meus Primos passavam o dia e a tarde inteira brincando, sem parar. meu Irmão gostava de passar o dia jogando futebol com os Primos da idade dele enquanto minha Irmã, já não mais tão criança, ficava com nossas Primas mais velhas, falando sobre esmaltes e cabelos e, às vezes, jogando banco imobiliário ou stop no quarto. eu, que nunca soube chutar uma bola sem tropeçar e que odiava pentear o cabelo (ainda odeio), pairava entre as duas turmas e não ficava mais de 15 minutos ao lado de algum dos meus Primos ou Irmãos. às vezes, eu ia para junto dos adultos, automaticamente atrás de minha Mãe, talvez por ter passado a primeira infância muito, mas muito apegada à ela. quando ela falava mais alto, quase gritando e rebolando, eu tapava meus ouvidos e me afastava, assustada. vozes altas sempre me perturbaram. eu ficava para cima e para baixo, tropeçando sem parar e guardando automaticamente todos os detalhes da casa na memória. isso cansava.

cansa, ainda.

quando anoitecia, ficávamos as estirados naqueles sofás, as crianças sujas, suadas e cansadas, junto com nossas Primas, já adolescentes, lindas e vaidosas. todos nós começávamos sempre a conversar sobre qualquer coisa e ficávamos falando, devagar, baixo tom, cansados, por horas. era minha parte favorita do dia e foi nessa época em que eu cheguei a conclusão que conversas me dão um extremo prazer. e então terminava o programa do faustão, com as pegadinhas e ríamos. e começava o fantástico e assistíamos todos juntos, conversando, ninguém prestava atenção, mas a televisão continuava ligada. quando algum aldulto - bêbado - vinha lá da varanda ver se 'as crianças estavam bem' nós só dizíamos 'estamos assistindo só.' e só.

sinto o cheiro forte de caipirinha e cerveja toda vez que vejo o faustão.

quando começava o sai de baixo, meu Pai e alguns Tios já começavam a agitar pra ir embora e segurar mais minha mãe pelos ombros. geralmente meus Irmãos e alguns dos Primos já estavam dormindo no sofá e eu estava olhando pro alto pensando como eu odiava ir pra escola, especialmente às segundas-feiras. meus Pais começavam a se despedir dos parentes e todos se cumprimentavam com um fervor tão forte, mas tão forte que chegava a me assustar algumas vezes. eles diziam coisas do tipo 'que deus abençoe seus filhos!', 'vá embora com cristo, hein!', 'vai com deus!' todos bêbados, afetivos e com cheiro forte de falsidade com cerveja.

com o passar do tempo, fomos crescendo e essas visitas dominicais foram se perdendo e chegamos a passar anos sem ir lá. só revi esses meus Primos e Tios, na época em que minha Tia-Avó morreu, bem velhinha, e Tio-Avô ficou extremamente doente logo em seguida da morte dela. eles eram casados há umas 6 décadas e todo mundo percebia que ainda rolava um clima entre eles. até eu percebia. com essa morte (alzeimer, derrame e mais não-sei-o-quê) a família ficou triste, achou horrível a morte dela e a doença terminal do meu Tio-Avô e todas essas coisas amargas que a morte proporciona para a maioria das pessoas. eu, pelo que conheci desses meus Tios, achei (e ainda acho) que toda essa situação foi uma das coisas mais românticas que já vi na minha vida: a morte dela estava muito óbvia e ninguém queria nem pensar sobre isso, porém meu Tio foi esperto e pensou muito sobre isso, que ia perdê-la e tal, e também fez com que ela pensasse sobre o fim de tudo. o bonito é que foi assim que eles aproveitara muito bem os últimos dias dela viva. eu nunca tinha visto um casal que se olhava de um jeito tão apaixonado como eles dois. quando ela morreu, meu Tio não chorou, ele dizia que 'já sabia disso e que já tinha chorado tudo o que tinha pra chorar no ombro dela quando viva' e ao invés de ficar rezando terços de joelhos, como o resto da família ficou, ele enfraqueceu e adoeceu, três dias depois, estava internado e ficou no hospital por meses. quando ele voltou para casa, fomos visitá-lo. ele está velho, mais de 80 anos e fraco, muito fraco. ele diz poucas palavras. disse que 'está cansado e com saudades, mas nada que um experiente saiba como lidar'.

depois disso, nunca mais o revi.

e depois dessa época, meu Pai se tornou uma barata de igreja. quase um padre. parou de beber, parou com palavrões, parou com as afeições momentâneas, começou a rezar terços pelos cantos e começou a escutar ao padre Marcelo todos os dias, às 6h e começou a julgar tudo e todos. minha Mãe...bom, minha Mãe parou de vez de ir para igreja, ainda é católica e não me lembro da última vez em que ela saiu de casa.

meu Pai sempre manteve uma parte da estante da sala destinada às suas bebidas favoridas. tem dreher, 51, jurupinga, vinho tinto e branco, champagnes ganhados. quando eu mais nova, ele costumava temperar a comida com uísque e ficava com um sabor maravilhosos. ele nunca mais fez isso depois que a religião lhe subiu à cabeça. aliás, essas bebidas estão intactas há anos com uma imagem da virgem maria sobre a porta que as guarda. eu chego a achar muito engraçado. eu achava que uma hora dessas alguém ia mudar essa parte da estante e, como eu queria lembrar disso para sempre, há alguns anos, tirei uma foto dessa composição contraditória.

eu só não imaginei que ninguém ia mexer ali. a imagem continua no mesmo lugar há...7 ou 8 anos? enfim, há anos. as bebidas ficam lá, abençoadas, ninguém ousa bebe-las, ninguém ousa jogá-las fora, ninguém aqui nem ousa tocá-las. e elas ficam lá, e meus Pais ficam aqui, escondidos e acomodados sob o virgem manto azul.

tudo o que eu mais queria agora é uma comer algo caseiro temperado com uísque, assistindo às pegadinhas do faustão, estirada no sofá, num domingo católico qualquer.


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meu nome é Chickey Whiskey e veio em nome do planeta Mickey. leve-me ao seu líder.

- hey!

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